sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

NÓS E OS NUS

(Por Laércio do Amaral)

“A opressão política sempre prestou ao teatro sua maior homenagem. Nos locais dominados pelo medo, o teatro é a manifestação que os governantes mais temem e vigiam mais atentamente.” Peter Brook (diretor inglês contemporâneo) in A Porta Aberta

Fixemos, por exemplo, o caso do artista. O protótipo do artista, se quiserem. É óbvio que aí encontramos uma figura muito distante daquilo que se considera ‘sério’. Valores não convencionais, palavras e frases talvez extravagantes, um modo de vida que torce o nariz aos bem pensantes. O artista – e o filósofo, quando fiel à sua vocação igualmente marginal – têm recebido ao longo da história o rótulo de louco. E a sua “loucura” consiste nisto: não é um homem ‘sério’.

Por oposição, nada parece ser levado tão ‘a sério’ quanto o trabalho artístico. Atividade desinteressada – não no sentido de alienação das questões de sua época, mas em oposição à ‘seriedade’ daquilo que é vigente. Não é sem motivo que hoje se busca no artista um modelo de ação não repressiva e de re-erotização do agir. O critério segundo o qual se orienta não é o lucro ou a dominação do outro, sendo flagrante que o artista realiza um conjunto de valores que se chocam frontalmente com aqueles que são vigentes.

No homem ‘sério’, ao contrário, encontramos a perfeita encarnação do ‘interessado’ – palavra agora utilizada em sua conotação menor: eu como objeto de seriedade. É ambicioso, calculista, visa lucro, poder, organiza suas relações em termos de futuro proveito, etc. Curioso notar que nada poderia estar tão distante dos valores idealmente apregoados pela tradição do pensamento ocidental do que o homem sério. No entanto, é o artista que, ao concretizar estes valores, acaba recebendo toda a carga de agressão sob o rótulo de ‘louco’.

O artista, este marginal, é objeto de tabu, suportando a mesma agressiva ambivalência por parte do homem ‘sério’: amor e ódio. Aliás, duas são as coisas que o homem ‘sério’ faz ao chegar ao poder: instaura a censura e constrói suntuosos museus e teatros. E distribui prêmios literários. Isso só parecerá contraditório se deixarmos de considerar que existem duas maneiras de aniquilar o artista: censurando-o ou promovendo-o a uma espécie de ornamento social. E é assim que o homem ‘sério’ exorciza aquilo que teme.

Este texto introdutório pertence a Roberto Gomes, filósofo brasileiro contemporâneo, no capítulo ‘A sério e a seriedade’, do livro ‘Crítica da Razão Tupiniquim’.
Elaborei e executei, juntamente com um amigo, também artista, uma performance na abertura da 38ª Coletiva de Artistas Plásticos de Joinville. Consistiu em dois personagens, duas pessoas que, alheias ao seu em torno, visitavam uma galeria de arte, apreciando as obras como se estivessem sós no espaço (um e outro, pois os mesmos não se comunicavam nem se viam). Simples. O detalhe é que estavam nus. Para estabelecer aquilo que chamaríamos de relação performática com o público tinham aposto no peito “sem título” e logo abaixo, “técnica mista”. Uma alusão a uma forma comum que observamos nas artes plásticas quando o artista não coloca nome na sua obra e quando explicita a forma como ele a elaborou tecnicamente. Creio que seja coisa contemporânea, sabe?

Um corpo humano não é uma obra de arte – a não ser que utilizemos a metáfora de um Deus Artista, o Grande Artífice, o que também não seria ruim, pois assim as crianças poderiam olhar para adultos nus apreciando-os como apreciam outros aspectos da Criação, como os campos verdejantes, as flores ou o entardecer numa praia, por exemplo. Portanto, para a performance, vimos que este detalhe transportaria os corpos para o patamar de “obra”.


Como todo ser pensante, tenho meu olhar particular sobre a sociedade. No meu ponto de vista, hoje a maioria dos integrantes da raça humana vive em pânico. Em graus variados, mais ou menos explícito, mas em pânico. Seja através da depressão, do consumo exagerado, das falcatruas, da violência em suas variadas nuances, da politicagem... não importa muito a forma, mas em pânico! Não me refiro aqui ao aspecto médico patológico da síndrome, mas a uma forma de manifestar sua ações, ou melhor dizendo, a falta de ação por um desígnio das mais diferentes formas de covardia. Guardadas as devidas proporções (!), o escritor José Saramago nos falaria sobre a cegueira branca e neste pequeno texto, falo sobre o pânico generalizado a que estamos submetidos em nossa maioria.

Segundo a mitologia hindu, estaríamos vivendo ‘kali yuga’, a era de ferro, onde a preponderância do viver da maioria é a gratificação dos sentidos, acredita-se apenas naquilo que é possível ser visto (pelos olhos físicos), não existe misericórdia e Deus tornou-se apenas mais um mito. As cinco características dessa era são a intoxicação, a prostituição, a matança de animais, a destruição da natureza e a jogatina.

Para essa era é colocada a imagem da vaca sagrada com três patas cortadas, ou seja, três quartos da população viveria nas trevas da ignorância e da covardia.
Mercê desse olhar, quando me proponho a atuar em qualquer área, procuro exercitar um estado de ‘presença’, que é similar àquilo que também buscamos enquanto atores para estar em cena.

Lanço mão de algumas ferramentas básicas nessa labuta: a meditação, a prática do yoga, o fazer artístico e o beijo na boca. A meditação para que eu possa me observar cada vez mais profundamente e manter minha mente clara e lúcida; a prática do yoga para manter meu corpo físico e meu cérebro em condições de acompanhar minha busca de autoconhecimento; o fazer artístico para poder falar sobre minhas dúvidas, minhas angústias, mas, principalmente, para poder expressar – pelo menos parte – da estonteante beleza e do espanto que é, para mim, estar no mundo e apreciar a grandiosidade da vida! Ah, e o beijo na boca... creio dispensar explicações.

Voltando agora não à vaca sagrada, mas às vacas frias, essa generalização do pânico viria de encontro com o medo do nu. Não do nu pornográfico, pois desse ninguém tem medo, ao contrário, se busca incessantemente, seja acompanhando o big brother (junto com as crianças) ou os programas dominicais desse mesmo nível, seja pela internet (via fácil) ou por tantas outras formas de conhecimento público e privado...

Falo agora do nu artístico.
Esse sim aciona medos profundos!
Minha contribuição como artista está na ação realizada e na proposta dessas reflexões...

2 comentários:

Jura Arruda disse...

Bravo!!

Daniel J.Casas, Joinville/SC disse...

Muito interessante a proposta e a indução a reflexão sobre nosso modo comtemporânio de nos relacionarmos com a vida 'nua e crua'.
Noto aqui em Joinville, a falta do que costumo chamar de 'radical', pessoas que buscam em suas atividades (artes, esportes,...) puxar o limite, criando assim novos conceitos, novas percepções e novos limites. E isso ao meu ver foi atingindo por vocês, foi 'Radical'...
Parabéns!!
Daniel Juliano Casas

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