quarta-feira, 1 de outubro de 2008

BANQUETE

As vezes ele ficava olhando bem tranqüilo pela janela do sétimo andar, fumava lentamente seu cigarro enquanto sua mente viajava pelas vielas do centro velho da cidade. Passava o dia tomando café, andando de cueca pelo apartamento sujo e cheio de baratas, ficava semanas sem tomar banho, às vezes passava dias sem comer.
Depois que a mulher morreu, ele entregou-se, ele vivia em função de amar a esposa, depois do acidente ele não tinha mais motivos para viver e decidiu que não amaria mais ninguém, nem a si mesmo. Queria morrer, não pagava as contas, não comprava comida, não atendia ao telefone, não falava mais com ninguém. Porém misteriosamente sua água e luz não eram cortadas e toda a manhã tinha na porta do apartamento uma bandeja com uma garrafa de café, pão, algumas frutas e dois maços de cigarro, nas sextas ainda tinham uma garrafa de cachaça que ele esvaziava devagar sem prazer.
Ele nunca quis saber quem fazia aquilo, tinha desconfiança de que os amigos de infância estavam tentando lhe ajudar, mas ele queria morrer e não procurava ninguém, continuava vegetando tranqüilo sem preocupação de estar incomodando, nem passava em sua cabeça estar agradecido por estarem lhe ajudando, vivia com o único objetivo de cessar de vez com sua agonia. As paredes estavam cada vez menores, seu mundo estava restrito aos pães de todas as manhãs, ao café antes e depois de cada cigarro e a cachaça de todos os fins de semana.
Uma manhã, na porta do apartamento estava o jornal, ele ignorava tudo o que acontecia fora do seu apartamento, há muitos meses nada lhe despertava interesse, na primeira página a foto escancarada de uma mulher sendo presa, encima da foto o título da matéria: “Presa mulher acusada de canibalismo”. Porque dessa vez trouxeram o Jornal? Quem seria a mulher?
Passaram os dias, o apartamento estava ficando cada vez mais sujo, ele havia perdido noção de tempo, não sabia em mês estavam, ele olhava pela janela e via no rosto das pessoas uma felicidade artificial, sentia nojo do próprio cheiro, mas se sentia mais puro do que aqueles que caminhavam lá embaixo.
Algumas noites ele não conseguia dormir, tinha pesadelos horríveis, noites intermináveis de insônia, numa manhã ao abrir a porta para pegar o café, encontrou um homem de terno preto, parado no corredor, o homem entrou sem pedir licença, atrás dele entraram duas mulheres que imediatamente começaram a limpar, ninguém falou nada, o homem lhe entregou sabonete e xampu, ele entendeu que era preciso tomar banho, fazia muitos dias que o chuveiro não era ligado, quando terminou, do lado de fora do Box, tinha um terno e uma muda de roupas que lhe servia exatamente. Ele não fez perguntas, e nenhuma daquelas pessoas disse absolutamente nada.
As mulheres continuavam a limpar a casa, ele foi até a sala e o homem de terno preto estava sentado no sofá fumando um cachimbo e olhando para o nada. Ele sentou ao seu lado, buscou com os olhos os seus cigarros, caminhou até a mesinha de centro, quando voltou a sentar, o homem de terno lhe ofereceu fogo, e eles fumaram juntos em silencio.
Quando ele deu sua última baforada no cigarro e jogou a ponta no chão, uma das mulheres automaticamente correu para juntar a bituca, o homem de terno quebrou o silêncio:
_ Qual o seu maior sonho?
_Meu maior sonho? Como assim?
_Qual o seu maior sonho? O que você mais deseja na vida?
_Morrer!
O Homem de terno esboçou um tímido sorriso, as mulheres ainda trabalhavam na arrumação, aquela casa mais parecia uma grande latrina. Na sala uma nuvem de pensamentos se misturava a fuça do cachimbo do homem de terno.
_ Pois bem, posso te ajudar! Posso realizar todos os teus desejos.
_Você vai me matar?
_Sim, é para isso que estou aqui, mas só vou fazer isso mediante a assinatura de um contrato.
_Que contrato? Você é o diabo? Quer minha alma?
_Sua alma? Não, quero o seu corpo!
_Você é gay?
O homem de terno levantou-se e foi até a janela.
_ Rapaz, venha aqui! Olhe a paisagem da sua janela.
_Vejo esta paisagem cinza todos os dias.
_Te ofereço o mundo, você pode viajar, ter todas as mulheres, usar todas as drogas, comer e beber o que quiser, mas depois do tempo estipulado pelo contrato, irei te buscar.
_Me buscar! Por quê?
_Quero o seu corpo, iremos realizar todos os teus desejos e quando o tempo do contrato terminar, iremos matá-lo e seu corpo será aproveitado.
_Aproveitado?
O homem de terno foi até o corredor, abriu a porta e chamou uma mulher, loira linda de vestido vermelho, e nas mãos um envelope. O homem de terno sorriu, pegou o envelope e o ofereceu a ele.
_ Você tem até o fim do dia para assinar o contrato!
Ele pegou o envelope, caminhou para a varanda, acendeu outro cigarro e estendeu outra nuvem de pensamentos, estes, porém, voaram pelas ruas da cidade e povoaram de lembranças todos os becos da cidade. Tentou pensar nas coisas que o levaram até ali, na mulher morta entre os destroços do carro, lembrou do dia do casamento, do dia em que fizeram amor na praia, lembrou que nada mais fazia sentido, que nada mais tinha razão de ser.
Ele não se deu conta, mas já estava anoitecendo, entrou na sala e a casa estava limpa, organizada e com o mesmo perfume de lavanda que costumava ter quando sua mulher era viva. Ele abriu o envelope bem lentamente e sem ler, assinou na última página encima do seu nome. Neste exato momento tocou a campainha, ele caminhou até a porta, no corredor estava a loira, que entrou, sorriu lindamente, pegou o contrato e saiu.
O que ele teria assinado? O que havia naquele contrato? E ele adormeceu, na madrugada aquelas nuvens de pensamentos se transformaram em tempestade e sua noite foi repleta de pesadelos. Na manhã seguinte acordou muito cedo, foi até a porta buscar o café e os seus cigarros, ficou alguns segundos parado tentando ouvir algum ruído que pudesse vir do lado de fora, sua mente estava conturbada, a solidão da sua alma era seu único sentimento. Respirou fundo, virou-se, olhou o horizonte pela janela e como que por impulso correu para varanda e pulou, caiu do sétimo andar bem encima dos fios de alta tensão, morreu sem abrir a porta. No corredor a bandeja o esperava com café, pão e cigarros. Seu corpo lá embaixo foi destruído pela morte violenta do suicídio deixando todo o bairro sem eletricidade. Os canibais da cidade precisavam encontrar outra pessoa para ser servido no banquete depois de assinar o contrato.

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