quarta-feira, 16 de abril de 2008

DIA DE TORTURA

Em 1986 havia sido anistiado, voltou para o Brasil depois de 10 anos no Chile, onde exilado dava aulas de filosofia, era ativista dos direitos humanos, figura célebre no meio intelectual latino-americano. Amigo de poetas e escritos famosos, freqüentava altas rodas do teatro e do cinema internacional.
Sua mulher sempre foi sua parceira em todos os momentos, pacifista convicta e amante da pátria, desrespeitou o exílio no Chile, e em 1979, furou a fronteira e voltou pra o Brasil lutar contra o regime. Ela e mais quatro companheiros foram presos numa tentativa frustrada de seqüestro. O objetivo era arrecadar dinheiro para dar continuidade à luta. Durante a tortura ela manteve-se firme em seus ideais, e por não falar nada, sangrou até morrer sozinha numa sala escura. Seus companheiros, todos sobreviveram, todos falaram tudo o que sabiam, foram presos e exilados, foram fracos, entregaram companheiros, descreveram os planos comunistas de tomar o poder, mas viveram para contar essa história.
Em 1979 a noticia de que ela havia morrido o deixou atônito, enlouquecido, queria voltar para o Brasil, denunciar os abusos da ditadura, mas não teve coragem, ficou no Chile, entregou-se ao uísque barato dos bares nas ruas de Santiago, continuou professor.
Em 1985 veio a noticia do fim da ditadura e em 1986 a anistia, foi convidado a voltar, poderia retomar sua vida. A lembrança do rosto de sua amada e de suas convicções políticas eram as coisas que o deixavam de pé. Logo ficou conhecido por seu envolvimento nas causas sociais, nas campanhas contra a fome no Brasil e na sua luta incensaste em favor dos Direitos Humanos. Em 1992 foi convidado a ser representante brasileiro na ONU, seu papel era defender e divulgar a defesa dos direitos humanos no mundo.
Em 1993, de férias no Rio Grande do Sul, num posto de gasolina encontrou um dos companheiros de luta dos anos 70. Ele havia arquitetado o plano de seqüestro que culminou com a morte de sua esposa. O companheiro parecia nervoso com sua presença, afinal de contas o que o amigo estaria fazendo ali? Justamente ali naquela cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul?
_ Férias! Estou de férias. Vim conhecer as vinícolas gauchas, dizem que estão muito boas, e você? O que faz aqui?
_ Estou a trabalho! Na verdade, estou na luta.
_ Como assim na luta?
_ A luta por liberdade meu caro, já se esqueceu dela?
_Liberdade é um estado de espírito.
_Estado de espírito e poder dormir em paz!
_ Pois se é assim, não durmo bem uma só noite desde 1979.
_Os caras mataram tua mulher, você ainda pensa muito nela?
_ Todos os dias! É o que me mantém de pé.
_ Pois bem, acho que você merece saber, pegamos ele.
_Como? Ele quem?
_ O torturador que matou sua esposa e que me castrou! O filho da puta me deu tanto choque elétrico no saco que eu perdi minhas bolas. Isso você não sabia não é?
_ Vocês quem? Você montou m grupo pra pegar o cara?
_ Juntei todas as pessoas que sobreviveram as torturas, estão todos lá.
Agora ele havia entendido, naquele fim de mundo ninguém iria reconhecer um torturador dos anos 70, ainda mais que a anistia o protege e ele tem direitos civis e criminais garantidos, mas não sei como, eles o encontraram, e para eles a vingança é a principal arma para anistiar as lembranças do passado. Convidou-me para vê-lo, desde minha prisão em 78 eu não ficava tão nervoso.
Eu estava preparado para encontrar um monstro, frio e sanguinário, o monstro que assassinou minha esposa e destruiu minha vida. Andamos de carro por quase uma hora, a cidade gaúcha foi ficando pra trás, chegamos a uma fazenda. Lá estavam vários companheiros, o silêncio era arrebatador, as muitas xepas de cigarro indicavam que eles estavam ali há muitos dias. Entrei sem cumprimentar ninguém, para aqueles homens ali, pouco importava a minha presença, todos sabiam de minha dor.
Na sala fechada, havia uma cadeira, um ponto fraco de luz e um homem, amarrado, nu e muito machucado.
_É ele?
_Sim, é o filho da puta!
_ Ele confessou tudo? Como vocês podem ter certeza que é ele?
_ Um homem não esquece o rosto do sujeito que lhe arrancou as suas bolas!
Olhei pra ele e tinha certeza que se ela estivesse viva nunca aprovaria uma coisa daquelas, senti nojo, vomitei no chão da sala, e percebi que a luz fraca escondia muita sujeira, antes de me recuperar, ouvi a voz dele:
_Sei que eu errei, sei do meu passado, mas pelo amor de deus me soltem.
_Diga uma coisa, ela implorou pela vida antes de você a matar? – A pergunta me saiu automaticamente.
_ Todas sempre imploraram, mas era o meu trabalho, minha missão... Fazia aquilo pelo meu país.
Lembrei das minhas noites em Santiago, lembrei da solidão de anos que sinto, a vida sem a mulher amada é vazia, sei que a escolha de voltar foi dela, que ela sabia dos riscos, ela tinha seus ideais.
Todo o meu discurso de direitos humanos veio à tona, as palestras na ONU, o fórum social mundial, o direito a vida. Senti sua respiração funda, ele ainda estava bem vivo, olhei-o nos olhos e esperei que ele me convencesse de que não deveria machucá-lo. Ele ficou em silêncio me olhando fixo. Minha raiva estava aumentando, eu estava feliz de ir passa férias no Rio Grande do Sul.
_Me solta, você não vai ganhar nada se me torturar.
_É! Mas eu vou te torturar assim mesmo!
Doce foi aquele dia, seis horas de raiva, com certeza foram as melhores férias de sua vida.

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